Na 2ª Guerra Mundial, 35 mil homens sertanistas perderam suas vidas em uma batalha silenciosa dentro da floresta. Só agora, 71 anos depois, começam a ter sua história reconhecida pelo Brasil
por Por Rosana Villar - publicado 28/05/2014 13:31, última modificação 28/05/2014 15:11
SANDRO PEREIRA/RBA
Lembranças de Venceslau: "Vi tanta tristeza no seringal. Uma vez eu vi patrão matar freguês por duzentos cruzeiros"
Manaus – “Você já chorou de fome?”, questiona o cearense Ivan Martins de Souza, antes de respirar fundo e perder as palavras por alguns instantes. “Eu já. Diante disso, nenhuma dificuldade é grande demais”, desabafa o homem de 90 anos, ao lembrar-se da vida que deixou para trás no sertão e do trabalho como Soldado da Borracha na Amazônia, onde sua família viveu e morreu.
Ivan está entre as 12.872 pessoas, entre ex-seringueiros e herdeiros, que conquistaram, no início de maio, o direito a uma indenização do governo federal no valor de R$ 25 mil, como reconhecimento pelos serviços prestados durante a 2ª Guerra Mundial. Na época, o governo brasileiro assumiu um acordo de fornecimento de borracha com os Estados Unidos e, para atender a esta demanda, enviou um “exército” de nordestinos aos confins da floresta para extrair leite de seringa.
Aproximadamente 60 mil pessoas foram para a mata. Ao fim da guerra, o saldo de motos chegou a 35 mil, segundo estimativas do Sindicato dos Soldados da Borracha do Acre. “Minha família era de Baturité, bem no sertão do Ceará. Naquela época, ou a gente se virava ou morria. E vivíamos com muita dificuldade. Quando houve esta oportunidade, de ir para a Amazônia ganhar dinheiro, muita gente quis apostar. O que mais veio foi cearense, pois são uns homens decididos e corajosos. Não tive medo, porque a necessidade faz isso com a gente”, conta Ivan.
A história do Exército da Borracha começou oficialmente em 1942. O ataque japonês à base militar de Pearl Harbor, no final de 1941, fez com que os Estados Unidos (EUA) entrassem definitivamente na Segunda Guerra Mundial. Mas um insumo importante para a indústria bélica e comercial dos norte-americanos, o látex, estava sob poder nipônico e a produção inglesa na Malásia estava comprometida. Foi neste ponto que o Brasil ganhou importância, já que o país poss
uía um estoque de 300 mil árvores seringueiras prontas para produzir.
Em março, o presidente Getúlio Vargas finalmente escolheu sua posição no campo de batalha e firmou um acordo com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, para fornecimento de borracha aos Países Aliados. Só faltava a mão de obra.
De acordo com a historiadora María Verónica Secreto, autora do livro Soldados da Borracha - Trabalhadores Entre o Sertão e a Amazônia no Governo Vargas, a migração nordestina para estados da Amazônia Ocidental já era uma realidade naquele período, quando começou o segundo ciclo da borracha. A cada nova seca, centenas de homens dirigiam-se para a região, em busca de tempos melhores. Por isso, recrutar estes trabalhadores, que viviam em extrema pobreza, parecia uma solução óbvia.
“No início da campanha, em plena seca de 1942, eles só recrutavam os homens solteiros e saudáveis. Mas, com a necessidade crescente por mão de obra, eles começaram a levar qualquer um que quisesse ir. Havia a opção de deixar a família sob a guarda do governo ou levá-la junto, o que vários faziam, então muitas crianças e adolescentes acabaram trabalhando nos seringais também, embora não fossem os recrutados oficiais”, conta a pesquisadora.
Quando Joaquim Batista chegou a Manaus, em 1944, tinha apenas 15 anos. Seu pai já havia passado uma temporada trabalhando na Amazônia e a campanha para o que chamavam de “esforço de guerra” trouxe novas perspectivas para a família.
“Viemos em um barco imenso, que ia parando o tempo todo e era acompanhado por um avião do Exército. Eram umas 700 famílias, com mulheres, crianças e tudo, a maioria do Ceará, como nós. Quase todos morreram, muitos de malária. Quando a pessoa pegava a doença e começava a inchar, a gente já sabia que não tinha mais jeito”, relata Batista, hoje com 85 anos.
SANDRO PEREIRA/RBAPedro da Silva de Oliveira, de 86 anos, que começou a cortar seringa aos 9, vai realizar um último sonho: ter sua casa toda feita em alvenaria
A grande aventura
Para reunir e redirecionar estes trabalhadores aos seus postos no “front” amazônico, o governo criou o Serviço de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia e a Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia. O cartunista suíço Jean-Pierre Chabloz foi contratado para desenvolver cartazes e folhetos que seriam usados no recrutamento.
A cada homem era entregue um kit, composto por uma calça azul, uma camisa branca, um chapéu de palha e um par de sandálias, uma caneca, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros. A assessoria do governo, no entanto, acabava por aí. Assim que eram deixados nas margens dos rios, os trabalhadores passavam para a responsabilidade dos coronéis donos dos seringais, que deveriam lhes prover abrigo, alimentação e um salário.
Belizário Costa, de 94 anos, tinha 20 quando decidiu trocar sua cidade natal, próxima de São Luís, no Maranhão, por Belém, no Pará. “Lá na capital eles falaram para nós que o Exército estava precisando de gente e que íamos ganhar muito bem, salário, remédio, comida, casa, bom pagamento. Fomos para a mata e quando chegou lá foi tudo o contrário, era diferente do que falaram. Passamos a comer farinha com água e sal e alguma caça que pegávamos, mas ainda tinha que pagar pela farinha, pelo sal e por cada bala de espingarda que usássemos. Pagávamos com nosso trabalho”, afirma.
O ex-seringueiro Ivan Martins conta que assim que chegou ao seringal a que foi designado, na região do rio Jatapu, no interior do Amazonas, recebeu apenas uma faca de seu patrão. “Foi difícil no início, mas meu pai se apaixonou por uma índia e foi ela que ensinou tudo sobre a floresta. Tinha uma planta que a gente amassava com água e tomava todo dia de manhã, que servia para espantar as coisas ruins, a malária e aquela leishmaniose. Esse bicho, quando ferra, vai comendo a carne da gente, é uma coisa horrível”, relata. O elixir natural, infelizmente, não impediu que ele pegasse malária, ao menos uma vez. “Foram oito meses doente.”
Uma das maneiras de se proteger de picadas de cobras e outros animais rastejantes, conta, era fabricar botas rudimentares de borracha, feitas com o látex cru extraído das seringueiras. “Colocava fogo em frutas de babaçu e ia modelando a borracha e defumando. Fazíamos isso várias vezes, até a proteção ficar bem grossa e resistente”, explica Martins.
As moradias eram feitas de palha e a maioria possuía apenas uma cobertura, sem paredes. Para complementar a ração fornecida pelo dono do seringal, a caça e a pesca eram rotinas diárias e muitas famílias cultivavam lavouras durante a vazante dos rios. “Fui enviado para Roraima. 105 homens. Deus me ajudou e me deu um grande amigo, que era de Belém, que me ensinou tudo o que era preciso para cortar seringa e sobreviver na floresta. Mas vi 28 companheiros morrerem”, afirma Belizário.
Anos de servidão
Poucos trabalhadores recrutados sabiam exatamente o que enfrentariam na floresta e muitos acabaram vítimas de doenças tropicais e de ataques de animais selvagens, como cobras e onças pintadas. Mas nenhum deles estava preparado para a ação de uma espécie de bicho conhecida pela ganância: o homem.
“Vi tanta tristeza no seringal. Barbaridades que os coronéis fizeram. Uma vez eu vi patrão matar freguês por duzentos cruzeiros. Porque o pai de família devia na venda e o patrão queria receber a espingarda como pagamento. O homem não entregou, pois era como ele caçava, então o patrão mandou matar. Isso era muito comum”, recorda o ex-seringueiro Venceslau Ferreira da Silva, de 94 anos.
O cearense Ivan Martins afirma que nunca recebeu o salário prometido pelo governo enquanto trabalhou como seringueiro. Mas que, ainda assim, o “emprego” valia a pena. “O dono do seringal queria a produção, mas não faltava nada de mercadoria para a gente. Comprávamos o rancho com o patrão e em troca ficávamos trabalhando para ele. Tínhamos roupa, pouco, mas tinha. Só não tinha dinheiro. Mas nosso caso era mesmo trabalhar para comer, e que deixasse o dinheiro para lá. Ser pago com comida já era melhor que morrer no sertão.”
Joaquim Batista também não se enxerga como alguém submetido a um regime de trabalho análogo ao da escravidão, mas sim como um agraciado pelo governo Getúlio Vargas. “A comida era uma fartura doida, caça, peixes que nós mesmos pegávamos e legumes que plantávamos”, lembra.
Para María Verónica Secreto, esta percepção foi em parte originada pela situação de completa miséria em que viviam estes migrantes na década de 40, mas também por influência política, em um processo de desvalorização do trabalhador como pessoa. “Quando a guerra acabou, e os homens foram abandonados na floresta, o Exército dizia para as esposas que seus maridos haviam decidido ficar, que arrumaram outras mulheres. Existem relatos escritos sobre isso. Depois que houve aquela denúncia internacional sobre a violação dos direitos humanos destes trabalhadores, que motivou a instauração de uma CPI em 1946, o advogado da União dizia ‘Vocês eram pobres, e vão continuar pobres, então ninguém perdeu nada”, afirma.
Reconhecimento
Ao fim da 2ª Guerra, em 1945, a Inglaterra retomou sua produção de látex na Ásia e o produto brasileiro deixou de ser interessante para o mercado internacional. Sem procura, os seringais começaram a ser abandonados, assim como seus trabalhadores.
De acordo com Verónica Secreto, os registros oficiais de recrutamento são parcos e divergentes. Por isso, não é possível saber com exatidão quantas pessoas foram enviadas para a floresta e quantas morreram neste processo.
“As pessoas foram deixadas lá. O Estado não tinha sequer uma lista com os nomes dos trabalhadores. Quando você se debruça sobre a documentação há ausência significante de números. Alguns dizem que 10 mil morreram, outros contabilizam 25 mil. Mas a quantidade de mortos pode ser muito maior”, observa.
No livro Amazônia – Um Pouco Antes e Além Depois, o empresário e filósofo amazonense Samuel Banchimol contabiliza a chegada de 50.500 homens entre 1943 e 1944, no auge do recrutamento. Na bagagem, entretanto, vieram 19.760 mulheres, de quem não se sabe quase nada.
Segundo o assistente social do Sindicato dos Soldados da Borracha do Acre, Luziel Carvalho, mesmo com o inquérito parlamentar de 1946, os seringueiros da guerra só começaram a ter seus direitos resgatados em 1988, com a Constituição Federal. Pelo artigo 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ficou definido que os soldados teriam direito a uma pensão vitalícia de dois salários mínimos, mas apenas quando carentes. A lei inclui os homens recrutados nos termos do Decreto-lei nº 5.813, de 1943, e todos os voluntários que atenderam ao “apelo do governo brasileiro”.
“O que não conseguimos entender é que enquanto 454 brasileiros morreram na Itália durante a 2ª Guerra, de 20 mil que foram enviados para a batalha, na floresta morreram 35 mil, dos 60 mil enviados, e os pracinhas da Itália têm direito a um benefício de sete salários mínimos, enquanto o soldado da borracha recebe dois e só se for carente. Isso não é justo”, afirma.
Para o assistente social, a Proposta de Emenda à Constituição nº 61/2013, promulgada no Senado no último dia 14, que garante a indenização de R$ 25 mil aos combatentes ainda vivos e herdeiros diretos, não contempla as perdas e sofrimentos da classe. “São trabalhadores que têm seus direitos negados há 70 anos”, completa.
Para Pedro da Silva de Oliveira, de 86 anos, que começou a cortar seringa aos 9, a indenização ainda lhe servirá para realizar um último sonho: ter sua casa toda feita em alvenaria. Atualmente o aposentado vive em uma moradia de madeira, localizada no bairro de Colônia Oliveira Machado, no centro de Manaus, onde muitos soldados da borracha se instalaram após o fim do segundo ciclo. “Quando vim para Manaus passei a trabalhar como pedreiro, mas nunca consegui fazer minha própria casa. Comecei a levantar sozinho algumas paredes e com a indenização vou fazer a casa toda.”
A PEC aprovada, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), foi apresentada originalmente na Câmara em 2002, pela então deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB). Na época, o projeto previa também a equiparação do benefício, mas houve resistência devido ao impacto orçamentário. “O pagamento dos sete salários mínimos como pensão chegou a ser aprovado na comissão especial da Câmara, mas houve resistência da área econômica do governo. Naquela Casa, chegou-se a propor a indenização e o pagamento de R$ 1.500 como pensão corrigida por outros indicadores, ou seja, acabava com a vinculação aos dois salários mínimos que já estavam garantidos na Constituinte de 1988”, esclarece Grazziotin.
A senadora admite que os valores não “são os justos”, mas chama atenção para a urgência em fechar um acordo sobre o assunto. “O fato é que os cerca de 6 mil soldados vivos possuem mais de 90 anos e tínhamos que garantir de imediato o benefício”, completa.
Segundo o texto da PEC, serão indenizados 12.872 beneficiários, entre soldados ainda vivos e dependentes. Desses, 11.500 mil ainda vivem na região Norte, sendo 6 mil no Acre, 3 mil em Rondônia e 2,5 mil no Amazonas.
De acordo com o vice-presidente do Sindicato dos Soldados da Borracha de Rondônia, George Telles de Menezes, a luta não acabou e em alguns dias os sindicatos da região Norte entrarão com uma ação conjunta, pedindo o reconhecimento militar dos soldados e a equiparação do benefício ao de outros pracinhas brasileiros. “Na época o governo prometeu moradia e assistência técnica, mas largaram todos lá e ainda hoje muitos vivem de aluguel. Foi um momento de covardia, era um trabalho de escravidão e o governo ainda vai pagar caro por isso”, disse.
Para o ex-seringueiro Joaquim Batista, as pessoas que mereciam esta indenização já estão mortas, mas o reconhecimento do governo ainda pode ajudar a melhorar a vida de seus descendentes. “Se a gente receber mesmo este dinheiro de que falam, eu vou pagar a faculdade do meu neto, que está se formando no colegial. Vai me dar muita alegria.”
Manaus – “Você já chorou de fome?”, questiona o cearense Ivan Martins de Souza, antes de respirar fundo e perder as palavras por alguns instantes. “Eu já. Diante disso, nenhuma dificuldade é grande demais”, desabafa o homem de 90 anos, ao lembrar-se da vida que deixou para trás no sertão e do trabalho como Soldado da Borracha na Amazônia, onde sua família viveu e morreu.
Ivan está entre as 12.872 pessoas, entre ex-seringueiros e herdeiros, que conquistaram, no início de maio, o direito a uma indenização do governo federal no valor de R$ 25 mil, como reconhecimento pelos serviços prestados durante a 2ª Guerra Mundial. Na época, o governo brasileiro assumiu um acordo de fornecimento de borracha com os Estados Unidos e, para atender a esta demanda, enviou um “exército” de nordestinos aos confins da floresta para extrair leite de seringa.
Aproximadamente 60 mil pessoas foram para a mata. Ao fim da guerra, o saldo de motos chegou a 35 mil, segundo estimativas do Sindicato dos Soldados da Borracha do Acre. “Minha família era de Baturité, bem no sertão do Ceará. Naquela época, ou a gente se virava ou morria. E vivíamos com muita dificuldade. Quando houve esta oportunidade, de ir para a Amazônia ganhar dinheiro, muita gente quis apostar. O que mais veio foi cearense, pois são uns homens decididos e corajosos. Não tive medo, porque a necessidade faz isso com a gente”, conta Ivan.
A história do Exército da Borracha começou oficialmente em 1942. O ataque japonês à base militar de Pearl Harbor, no final de 1941, fez com que os Estados Unidos (EUA) entrassem definitivamente na Segunda Guerra Mundial. Mas um insumo importante para a indústria bélica e comercial dos norte-americanos, o látex, estava sob poder nipônico e a produção inglesa na Malásia estava comprometida. Foi neste ponto que o Brasil ganhou importância, já que o país poss
uía um estoque de 300 mil árvores seringueiras prontas para produzir.
Em março, o presidente Getúlio Vargas finalmente escolheu sua posição no campo de batalha e firmou um acordo com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, para fornecimento de borracha aos Países Aliados. Só faltava a mão de obra.
De acordo com a historiadora María Verónica Secreto, autora do livro Soldados da Borracha - Trabalhadores Entre o Sertão e a Amazônia no Governo Vargas, a migração nordestina para estados da Amazônia Ocidental já era uma realidade naquele período, quando começou o segundo ciclo da borracha. A cada nova seca, centenas de homens dirigiam-se para a região, em busca de tempos melhores. Por isso, recrutar estes trabalhadores, que viviam em extrema pobreza, parecia uma solução óbvia.
“No início da campanha, em plena seca de 1942, eles só recrutavam os homens solteiros e saudáveis. Mas, com a necessidade crescente por mão de obra, eles começaram a levar qualquer um que quisesse ir. Havia a opção de deixar a família sob a guarda do governo ou levá-la junto, o que vários faziam, então muitas crianças e adolescentes acabaram trabalhando nos seringais também, embora não fossem os recrutados oficiais”, conta a pesquisadora.
Quando Joaquim Batista chegou a Manaus, em 1944, tinha apenas 15 anos. Seu pai já havia passado uma temporada trabalhando na Amazônia e a campanha para o que chamavam de “esforço de guerra” trouxe novas perspectivas para a família.
“Viemos em um barco imenso, que ia parando o tempo todo e era acompanhado por um avião do Exército. Eram umas 700 famílias, com mulheres, crianças e tudo, a maioria do Ceará, como nós. Quase todos morreram, muitos de malária. Quando a pessoa pegava a doença e começava a inchar, a gente já sabia que não tinha mais jeito”, relata Batista, hoje com 85 anos.
SANDRO PEREIRA/RBAPedro da Silva de Oliveira, de 86 anos, que começou a cortar seringa aos 9, vai realizar um último sonho: ter sua casa toda feita em alvenaria
A grande aventura
Para reunir e redirecionar estes trabalhadores aos seus postos no “front” amazônico, o governo criou o Serviço de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia e a Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia. O cartunista suíço Jean-Pierre Chabloz foi contratado para desenvolver cartazes e folhetos que seriam usados no recrutamento.
A cada homem era entregue um kit, composto por uma calça azul, uma camisa branca, um chapéu de palha e um par de sandálias, uma caneca, um prato fundo, um talher, uma rede e uma carteira de cigarros. A assessoria do governo, no entanto, acabava por aí. Assim que eram deixados nas margens dos rios, os trabalhadores passavam para a responsabilidade dos coronéis donos dos seringais, que deveriam lhes prover abrigo, alimentação e um salário.
Belizário Costa, de 94 anos, tinha 20 quando decidiu trocar sua cidade natal, próxima de São Luís, no Maranhão, por Belém, no Pará. “Lá na capital eles falaram para nós que o Exército estava precisando de gente e que íamos ganhar muito bem, salário, remédio, comida, casa, bom pagamento. Fomos para a mata e quando chegou lá foi tudo o contrário, era diferente do que falaram. Passamos a comer farinha com água e sal e alguma caça que pegávamos, mas ainda tinha que pagar pela farinha, pelo sal e por cada bala de espingarda que usássemos. Pagávamos com nosso trabalho”, afirma.
O ex-seringueiro Ivan Martins conta que assim que chegou ao seringal a que foi designado, na região do rio Jatapu, no interior do Amazonas, recebeu apenas uma faca de seu patrão. “Foi difícil no início, mas meu pai se apaixonou por uma índia e foi ela que ensinou tudo sobre a floresta. Tinha uma planta que a gente amassava com água e tomava todo dia de manhã, que servia para espantar as coisas ruins, a malária e aquela leishmaniose. Esse bicho, quando ferra, vai comendo a carne da gente, é uma coisa horrível”, relata. O elixir natural, infelizmente, não impediu que ele pegasse malária, ao menos uma vez. “Foram oito meses doente.”
Uma das maneiras de se proteger de picadas de cobras e outros animais rastejantes, conta, era fabricar botas rudimentares de borracha, feitas com o látex cru extraído das seringueiras. “Colocava fogo em frutas de babaçu e ia modelando a borracha e defumando. Fazíamos isso várias vezes, até a proteção ficar bem grossa e resistente”, explica Martins.
As moradias eram feitas de palha e a maioria possuía apenas uma cobertura, sem paredes. Para complementar a ração fornecida pelo dono do seringal, a caça e a pesca eram rotinas diárias e muitas famílias cultivavam lavouras durante a vazante dos rios. “Fui enviado para Roraima. 105 homens. Deus me ajudou e me deu um grande amigo, que era de Belém, que me ensinou tudo o que era preciso para cortar seringa e sobreviver na floresta. Mas vi 28 companheiros morrerem”, afirma Belizário.
Anos de servidão
Poucos trabalhadores recrutados sabiam exatamente o que enfrentariam na floresta e muitos acabaram vítimas de doenças tropicais e de ataques de animais selvagens, como cobras e onças pintadas. Mas nenhum deles estava preparado para a ação de uma espécie de bicho conhecida pela ganância: o homem.
“Vi tanta tristeza no seringal. Barbaridades que os coronéis fizeram. Uma vez eu vi patrão matar freguês por duzentos cruzeiros. Porque o pai de família devia na venda e o patrão queria receber a espingarda como pagamento. O homem não entregou, pois era como ele caçava, então o patrão mandou matar. Isso era muito comum”, recorda o ex-seringueiro Venceslau Ferreira da Silva, de 94 anos.
O cearense Ivan Martins afirma que nunca recebeu o salário prometido pelo governo enquanto trabalhou como seringueiro. Mas que, ainda assim, o “emprego” valia a pena. “O dono do seringal queria a produção, mas não faltava nada de mercadoria para a gente. Comprávamos o rancho com o patrão e em troca ficávamos trabalhando para ele. Tínhamos roupa, pouco, mas tinha. Só não tinha dinheiro. Mas nosso caso era mesmo trabalhar para comer, e que deixasse o dinheiro para lá. Ser pago com comida já era melhor que morrer no sertão.”
Joaquim Batista também não se enxerga como alguém submetido a um regime de trabalho análogo ao da escravidão, mas sim como um agraciado pelo governo Getúlio Vargas. “A comida era uma fartura doida, caça, peixes que nós mesmos pegávamos e legumes que plantávamos”, lembra.
Para María Verónica Secreto, esta percepção foi em parte originada pela situação de completa miséria em que viviam estes migrantes na década de 40, mas também por influência política, em um processo de desvalorização do trabalhador como pessoa. “Quando a guerra acabou, e os homens foram abandonados na floresta, o Exército dizia para as esposas que seus maridos haviam decidido ficar, que arrumaram outras mulheres. Existem relatos escritos sobre isso. Depois que houve aquela denúncia internacional sobre a violação dos direitos humanos destes trabalhadores, que motivou a instauração de uma CPI em 1946, o advogado da União dizia ‘Vocês eram pobres, e vão continuar pobres, então ninguém perdeu nada”, afirma.
Reconhecimento
Ao fim da 2ª Guerra, em 1945, a Inglaterra retomou sua produção de látex na Ásia e o produto brasileiro deixou de ser interessante para o mercado internacional. Sem procura, os seringais começaram a ser abandonados, assim como seus trabalhadores.
De acordo com Verónica Secreto, os registros oficiais de recrutamento são parcos e divergentes. Por isso, não é possível saber com exatidão quantas pessoas foram enviadas para a floresta e quantas morreram neste processo.
“As pessoas foram deixadas lá. O Estado não tinha sequer uma lista com os nomes dos trabalhadores. Quando você se debruça sobre a documentação há ausência significante de números. Alguns dizem que 10 mil morreram, outros contabilizam 25 mil. Mas a quantidade de mortos pode ser muito maior”, observa.
No livro Amazônia – Um Pouco Antes e Além Depois, o empresário e filósofo amazonense Samuel Banchimol contabiliza a chegada de 50.500 homens entre 1943 e 1944, no auge do recrutamento. Na bagagem, entretanto, vieram 19.760 mulheres, de quem não se sabe quase nada.
Segundo o assistente social do Sindicato dos Soldados da Borracha do Acre, Luziel Carvalho, mesmo com o inquérito parlamentar de 1946, os seringueiros da guerra só começaram a ter seus direitos resgatados em 1988, com a Constituição Federal. Pelo artigo 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ficou definido que os soldados teriam direito a uma pensão vitalícia de dois salários mínimos, mas apenas quando carentes. A lei inclui os homens recrutados nos termos do Decreto-lei nº 5.813, de 1943, e todos os voluntários que atenderam ao “apelo do governo brasileiro”.
“O que não conseguimos entender é que enquanto 454 brasileiros morreram na Itália durante a 2ª Guerra, de 20 mil que foram enviados para a batalha, na floresta morreram 35 mil, dos 60 mil enviados, e os pracinhas da Itália têm direito a um benefício de sete salários mínimos, enquanto o soldado da borracha recebe dois e só se for carente. Isso não é justo”, afirma.
Para o assistente social, a Proposta de Emenda à Constituição nº 61/2013, promulgada no Senado no último dia 14, que garante a indenização de R$ 25 mil aos combatentes ainda vivos e herdeiros diretos, não contempla as perdas e sofrimentos da classe. “São trabalhadores que têm seus direitos negados há 70 anos”, completa.
Para Pedro da Silva de Oliveira, de 86 anos, que começou a cortar seringa aos 9, a indenização ainda lhe servirá para realizar um último sonho: ter sua casa toda feita em alvenaria. Atualmente o aposentado vive em uma moradia de madeira, localizada no bairro de Colônia Oliveira Machado, no centro de Manaus, onde muitos soldados da borracha se instalaram após o fim do segundo ciclo. “Quando vim para Manaus passei a trabalhar como pedreiro, mas nunca consegui fazer minha própria casa. Comecei a levantar sozinho algumas paredes e com a indenização vou fazer a casa toda.”
A PEC aprovada, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), foi apresentada originalmente na Câmara em 2002, pela então deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB). Na época, o projeto previa também a equiparação do benefício, mas houve resistência devido ao impacto orçamentário. “O pagamento dos sete salários mínimos como pensão chegou a ser aprovado na comissão especial da Câmara, mas houve resistência da área econômica do governo. Naquela Casa, chegou-se a propor a indenização e o pagamento de R$ 1.500 como pensão corrigida por outros indicadores, ou seja, acabava com a vinculação aos dois salários mínimos que já estavam garantidos na Constituinte de 1988”, esclarece Grazziotin.
A senadora admite que os valores não “são os justos”, mas chama atenção para a urgência em fechar um acordo sobre o assunto. “O fato é que os cerca de 6 mil soldados vivos possuem mais de 90 anos e tínhamos que garantir de imediato o benefício”, completa.
Segundo o texto da PEC, serão indenizados 12.872 beneficiários, entre soldados ainda vivos e dependentes. Desses, 11.500 mil ainda vivem na região Norte, sendo 6 mil no Acre, 3 mil em Rondônia e 2,5 mil no Amazonas.
De acordo com o vice-presidente do Sindicato dos Soldados da Borracha de Rondônia, George Telles de Menezes, a luta não acabou e em alguns dias os sindicatos da região Norte entrarão com uma ação conjunta, pedindo o reconhecimento militar dos soldados e a equiparação do benefício ao de outros pracinhas brasileiros. “Na época o governo prometeu moradia e assistência técnica, mas largaram todos lá e ainda hoje muitos vivem de aluguel. Foi um momento de covardia, era um trabalho de escravidão e o governo ainda vai pagar caro por isso”, disse.
Para o ex-seringueiro Joaquim Batista, as pessoas que mereciam esta indenização já estão mortas, mas o reconhecimento do governo ainda pode ajudar a melhorar a vida de seus descendentes. “Se a gente receber mesmo este dinheiro de que falam, eu vou pagar a faculdade do meu neto, que está se formando no colegial. Vai me dar muita alegria.”
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