O primeiro deles certamente é o tema da impunidade. De repente, os adolescentes são os principais responsáveis pela violência no país. Essa assertiva é descontextualizada de qualquer levantamento minimamente sério de dados e tem desdobramentos, tais como os seguintes lugares comuns: o ECA está ultrapassado; o adolescente infrator não é punido; o adolescente infrator está sendo superprotegido pela legislação atual.
Para rebater tais argumentos é preciso também compreender como funciona o sistema de responsabilização juvenil no Brasil e os efeitos do encarceramento, coisa difícil de acontecer somente por intermédio dos meios de comunicação. Alguns deles, já assumiram há duas décadas a posição favorável à redução. Outros, disseminam diariamente uma cantilena agressiva contra os direitos humanos e o ECA, mergulhados na estratégia de mercado de espetacularização da violência. Para romper o cerco, o cidadão encontra dificuldades, daí o apelo majoritário pela redução da maioridade penal.
O ECA surge no cenário mundial, como um conjunto de leis em sintonia com a convenção dos direitos da criança e do adolescente, de 1989. Lembramos que 1979 foi declarado ano internacional da criança. Esse diploma legal rompe com antigo Código de Menores e situa a criança ou adolescente como sujeito de direitos; sob a responsabilidade da família; na co-responsabilidade da sociedade e do estado; como prioridade absoluta nas políticas públicas. Portanto, longe de ser uma legislação ultrapassada, sempre esteve à frente das limitações políticas dos nossos governantes.
A base principiológica do ECA não é o simples encarceramento, isso irrita o senso comum, porque está sendo adestrado para a vingança. Mas nenhum pena tem como objetivo apenas a punição (função retributiva), nem no sistema penal destinado aos adultos. O tratamento diferenciado leva em conta a distinção real que existe entre criança/adolescente e adultos. Pessoas cuja personalidade, intelecto, caráter estão ainda em formação são mais suscetíveis à reeducação e ressocialização, daí a necessidade de um sistema de responsabilização apartado.
Confinar adolescentes juntamente com adultos seria contribuir para dificultar esse processo de reorientação, agravando mais ainda os velhos problemas do sistema penitenciário e da segurança pública: superlotação, reincidência e recrutamento para o tráfico.
Para o senso comum, a questão é retirar as pessoas do convívio social, mas o Brasil já faz isso com adultos, descumprindo as diretrizes ressocializadoras da Lei de Execução Penal, e a violência só está aumentando. O Mapa do Encarceramento, divulgado recentemente atestou que a população carcerária no Brasil cresceu 74% entre 2005 e 2012. Em todos os Estados existe superlotação (a média é de 1,7 presos por vaga).
Por outro lado, o Mapa da Violência informa que os adolescentes internados em centros de medida socioeducativa são, na maioria, negros (66%), com baixa escolaridade (59,9% com ensino fundamental incompleto) e extremamente pobres (60%).
O problema é que essa massa carcerária toda retorna obrigatoriamente para a sociedade. No sistema penal de adultos, a taxa de reincidência é de 70%. O do ECA é de apenas 20% Esse dado demonstra que o nosso sistema de responsabilização juvenil é mais eficiente e que podemos trocá-lo por algo pior. E muito embora quase nenhum âncora ou apresentador de telejornal o diga, os adolescentes também retornarão ao convívio social.
O déficit do sistema convencional é de cerca de 220 mil vagas e 400 mil mandados de prisão em aberto. A superlotação e o domínio das facções criminosas são a marca mais evidente desse sistema falido. O Estado brasileiro nunca implementou cabalmente a Lei de Execuções Penais e ninguém acredita mais que o fará tão cedo. Os presídios se transformaram em fábricas de produção em série de infratores da lei, cada vez mais especializados.
Dados da UNICEF indicam apenas 1% dos homicídios registrados no país são praticados por adolescentes, dentro de um contexto geral de 56.337 homicídios/ano. A estatística é muito baixa para justificar mudanças tão drásticas, capazes de implodir o sistema prisional, seguro por frágeis cordões habilmente manejados por lideranças do narcotráfico.
Os dados sobre o extermínio da juventude no Brasil são estarrecedores. O número de mortos por armas de fogo no Brasil chegou a 42.416 pessoas em 2012. Isso equivale a 116 óbitos por dia. Desse número 59% referem-se a jovens. A taxa de homicídio contra adolescentes de 16 e 17 anos aumentou 496,4% entre 1980 e 2013. (Esses dados foram revelados por um estudo realizado pelo governo brasileiro, a Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
E ainda há quem suba na tribuna da Câmara para afirmar que o Brasil somente confere direitos aos seus adolescentes e nunca responsabilidades.
O problema da agenda na Câmara diz respeito ao pacto de convivência das elites. Nós tentamos romper o mais recente deles, com a reforma política. O resultado foi quase um insofismável retrocesso, em direção a mecanismos mais elitistas de controle do sistema de representação. O máximo que a sociedade civil organizada conseguiu foi não piorar o que já é muito ruim.
Os grupos conservadores continuarão a cruzada sangrenta contra as conquistas civilizatórias mais ousadas do povo brasileiro. Numa conjuntura de supressão e retrocesso de direitos, o tema da violência serve bem ao propósito de escamoteamento do debate estrutural, aquele que se refere a um novo paradigma para combater a violência.
Não se combate a violência com prisões, exclusão social e seletivismo penal. Isso já foi testado no mundo afora. Não deu certo. Segurança exige um novo pacto social e mais democracia. É impossível alinhar cortes no orçamento para as políticas públicas com um sistema de segurança e justiça mais eficiente.
Não é apenas o sistema de atendimento socioeducativo que vai mal no Brasil mas talvez seja a última das políticas públicas abandonadas pelos governos que se menciona nesse debate da redução da maioridade penal. O SINASE prevê normas para padronizar os procedimentos jurídicos envolvendo menores de idade, que vão desde a apuração do ato infracional até a aplicação das medidas socioeducativas. Ele especifica ainda as responsabilidades dos governos federal, estadual e municipal em relação à aplicação das medidas e a reinserção social dos adolescentes em conflito com a lei.
Basta visitar uma unidade de cumprimento de medidas sócioeducativas para compreender que o ECA não foi implementado na sua totalidade e que a grande maioria da população sequer está informada de como deveria funcionar o sistema de responsabilização juvenil. Mas esse debate poderia conduzir a classe política brasileira para um beco sem saída. Ou melhor, para saídas que as elites não querem.
Por isso, ainda é melhor comprar munições e construir presídios do que formar cidadãos, livres e sujeitos de direitos. Enclausurados eles comporão o triste cenário para justificar uma rede interessada em fortalecer cada vez mais os mecanismos de repressão de uma sociedade cada vez mais excludente. E o discurso de combate à impunidade é o mote para a regressão e a barbárie.
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