sexta-feira, 12 de junho de 2015
Mapa do Encarceramento: Quem são os criminosos?
Por Leonardo Isaac Yarochewski
A população prisional no Brasil cresceu 74% entre 2005 e 2012. Em 2005, o número de presos no país era 296.919, sete anos depois, passou para 515.482. A população prisional masculina cresceu 70%, enquanto a feminina aumentou 146% no mesmo período.
Os dados estão no estudo Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil, divulgado no último dia 3 de junho pela Secretaria-Geral da Presidência da República. O levantamento foi feito pela pesquisadora Jacqueline Sinhoretto com base nos dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), do Ministério da Justiça. Segundo o estudo, o crescimento foi impulsionado pela prisão de jovens, negros e mulheres.
Hoje, a população carcerária brasileira ultrapassa a cifra de 715.000 presos, contando os que estão em prisão domiciliar, é a terceira maior população carcerária do mundo. Uma proporção de 358 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. Estima-se que se forem computados também o número de pessoas condenadas às penas restritivas de direitos, não há dados atualizados sobre esta modalidade de pena, este número ultrapassaria 1 milhão e 500 mil pessoas sob alguma forma de controle penal e de cumprimento de pena.
A população carcerária brasileira é formada em sua maioria por homens negros, com baixa escolaridade e por jovens. O estudo mostra que menores de 29 anos, embora representem 10% da população brasileira, são responsáveis por 55% da lotação dos presídios no País. Homens negros, por sua vez, têm o risco 1,5 vezes maior de ser preso do que um homem branco. Em 2012, por exemplo, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, havia 191 brancos encarcerados, enquanto para 100 mil habitantes negros, 292 negros encarcerados.
Ainda, de acordo com o levantamento, 38% dos presos estão sem julgamento. Ou seja, são presos provisórios que inclusive poderão ser absolvidos. Estes dados revelam o desprezo pelo princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII da Constituição da República). Entre os presos condenados, 69% estão no regime fechado, 24% no regime semiaberto e 7% no regime aberto. Quase metade (48%) dos presos foi condenado à pena de até 08 anos de prisão.
Como bem avaliou o secretário Nacional de Juventude, Gabriel Medina, “O Brasil encarcera muito, encarcera mal e não ressocializa seus presos“. Somando crimes contra patrimônio e de drogas correspondem cerca de 70% das causas das prisões.
Contudo, é necessário destacar que, o que é considerado tráfico para alguns, no caso dos mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Não é sem razão que a grande maioria da população carcerária é composta por negros e pobres. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou a autora da pesquisa,Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. “A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras por tráfico“, disse a pesquisadora.
Os dados do referido Mapa vêm confirmar o que há tempos foi delineado por Augusto Thompson em sua obra “Quem são os criminosos?”. Segundo o autor, o primeiro traço básico da imagem do criminoso que representa para si mesma a ideologia dominante, refere-se a seu “baixo status social”. De acordo com Thompson, pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinquente típico, teremos, em função da resposta, “o retrato preciso de um representante da classe social inferior”, o que poderá estabelecer “o intercâmbio entre pobreza e crime”. Ao afirmar que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, alerta Thompson, “abre-se facilmente a possibilidade de inverter os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso”. Tudo isto, vem corroborar com uma das conclusões a qual chegou à pesquisadora no Mapa do Encarceramento, de que o sistema penal é desigual, tratando os mais vulneráveis (pobres, negros, favelados, etc.) – os que precisamente deveriam receber maior amparo por parte do Estado – com maior rigor e violência.
Os dados extraídos do Mapa do Encarceramento, como toda pesquisa séria, é de suma importância para compreensão da criminalidade. Como destaca o criminólogo Alessandro Baratta, “não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituição penitenciárias que as aplicam), e que, por isso o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como delinquente”. [1]
Aqui entra a teoria do “labeling approach” (enfoque do etiquetamento), cujo nome provém de sua tese central: a criminalidade não é uma qualidade de uma determinada conduta, senão o resultado de um processo de atribuição de tal qualidade, de um processo de estigmatização. A criminalidade, explica Winfried Hassemer, é uma etiqueta “que se aplica por la policia, los fiscales y los tribunales penales, es decir, por las instancias formales de control social”[2]
O criminólogo Juarez Cirino dos Santos, com sua visão humanista e crítica, discorre sobre os objetivos reais (ou latentes), nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenômenos da vida social nas sociedades contemporâneas, identificados pelo discurso crítico da teoria criminológica da pena.
Segundo Juarez Cirino, “a política de controle social instituída pelo Direito Penal e implementada pelo Sistema de Justiça Criminal inclui o conjunto do ordenamento jurídico e político do Estado, além de outras instituições da sociedade civil, como a empresa, a família, a escola, a imprensa, a Igreja, os partidos políticos, os sindicatos, os meios de comunicação etc.As formas jurídicas e políticas do Estado e as organizações da sociedade civil convergem na tarefa de instituir e reproduzir uma determinada formação econômico-social histórica, em que os homens se relacionam como integrantes de classes ou de categorias sociais estruturais da sociedade. O Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal constituem, no contexto dessa formação econômico-social, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo”.[3]
Diante dos dados trazidos a baila pelo Mapa do Encarceramento, não se pode olvidar, principalmente em razão da duplicação da população carcerária na última década, dos efeitos criminógenos do cárcere. Louk Hulsman observa que “o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas sequelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também, e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril”. [4]
No mesmo sentido, Juarez Cirino adverte que “a crise da execução da pena, como realização do projeto técnico-corretivo da prisão, é irreversível. E a explicação da crise é simples: a prisão introduz o condenado em duplo processo de transformação pessoal, de desculturação pelo desaprendizado dos valores e normas de convivência social, e de aculturação pelo aprendizado de valores e normas de sobrevivência na prisão, a violência e a corrupção – ou seja, a prisão só ensina a viver na prisão”. [5]
Ao contrário do que os mais afoitos, ilusionistas e demagogos de plantão podem imaginar, não são arquitetos e engenheiros que resolveram os problemas estampados no Mapa do Encarceramento e demais censos penitenciários, mais do que construir presídios, penitenciárias de segurança máxima e cadeias para presos, é preciso repensar o direito penal e o sistema penal. Este sistema penal que na maioria esmagadora das vezes se dirige contra certas pessoas (prioritariamente os mais débeis e vulneráveis), ao invés de se dirigir contra as condutas (ações e omissões) definidas como crime. Pessoas, segundo Vera Regina Pereira de Andrade, com estereótipos de criminosos que são tecidos por variáveis como statussocial, cor, condição familiar, majoritariamente características pertencentes àquelas pessoas dos baixos estratos sociais, além de outros fatores que contribuem para uma maior criminalização.[6]
O poder seletivo do sistema penal, afirma Zaffaroni, “elege alguns candidatos à criminalização, desencadeia o processo de criminalização e submete-o à decisão da agência judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou decidir pela suspensão da mesma.” A escolha, prossegue o jurista argentino, “é feita em função da pessoa (o ‘bom candidato’ é escolhido a partir de um estereótipo), mas à agência judicial só é permitido intervir racionalmente para limitar essa violência seletiva e física, segundo certo critério objetivo próprio e diverso do que rege a ação seletiva do restante exercício de poder do sistema penal, pois, do contrário, não se justifica a sua intervenção e nem sequer a sua existência (somente se ‘explicaria’ funcionalmente)”. [7]
Numa sociedade de classes, destaca Nilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”.[8]
Seletividade, repressividade e estigmatização, no dizer de Nilo Batista, são algumas das características de sistemas penais como o brasileiro. Não pode o jurista, conclui o eminente professor, “encerrar-se no estudo – necessário, importante e específico, sem dúvida – de um mundo normativo, ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam”.
Por tudo, é forçoso que o Estado Penal seja imediatamente suplantado pelo Estado Social. Necessário que a sociedade entenda que a melhor política-criminal, como já proclamouHassemer, é sua substituição pela política-social. Os dados do Mapa do Encarceramento,bem como o aumento galopante da população carcerária revelado por todas as pesquisas são indicadores de que o sistema penal, que há muito entrou em colapso, é reprodutor da violência e mantenedor das desigualdades e injustiças sociais.
Para ler e compreender os dados e os números trazidos pelo Mapa do Encarceramento, é imperioso que seja retirada a venda dos olhos de Têmis, para que a realidade crua, desumana, discriminatória, cruel e atentatória dos direitos humanos mais elementares seja realmente vista, a fim de que algum dia, quem sabe, “quando o segundo sol chegar para realinhar as órbitas do planeta”, como diz o poeta, possa ser dito que no Brasil além da mera democracia (formal), há uma verdadeira e efetiva democracia (substancial/material), consistente na participação efetiva das pessoas no processo decisório, na qual a dignidade da pessoa humana seja inerente a todos os indivíduos, independente de condição social, sexo, cor e religião. Somente assim, poder-se-á pensar em Estado Democrático de Direito.Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUCMinas
Dedico este artigo ao Professor Dr. Juarez Cirino dos Santos. Humanista, garantista e combatente das injustiças sociais.
[1](BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999).
[2] (HASSEMER,Winfried. Fundamentos del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984, p. 82).
[3] (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014).
[4](HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993).
[5](Cf. ob. cit. p. 452-453)
[6] (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003). Trata-se, pois, de um sistema seletivo (quantitativamente e qualitativamente).
[7](ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246).
[8] (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990).
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